segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O insustentável preconceito do ser

Quinta-feira, 28 de Junho de 2010, 20:07


Era o admirável mundo novo! Recém-chegada de Salvador, vinha a convite de uma
emissora de TV, para a qual já trabalhava como repórter. Solícitos, os colegas
da redação paulistana se empenhavam em promover e indicar os melhores programas
de lazer e cultura, onde eu abastecia a alma de prazer e o intelecto de novos
conhecimentos.
Era o admirável mundo civilizado! Mentes abertas com alto nível de educação formal. No entanto, logo percebi o ruído no discurso:- Recomendo um passeio pelo nosso "Central Park", disse um repórter. Mas evite ir ao Ibirapuera nos
domingos, porque é uma baianada só!
-Então estarei em casa- repliquei ironicamente.

-Ai, desculpa, não quis te ofender. É força de expressão. Tô falando de um tipo
de gente.
-A gente que ajudou a construir as ruas e pontes, e a levantar os prédios da
capital paulista?
-Sim, quer dizer, não! Me refiro às pessoas mal-educadas, que falam alto e fazem
"farofa" no parque.
-Desculpe, mas outro dia vi um paulistano que, silenciosamente, abriu a janela
do carro e atirou uma caixa de sapatos.
-Não me leve a mal, não tenho preconceitos contra os baianos. Aliás, adoro a sua
terra, seu jeito de falar....
De fato, percebo que não existe a intenção de magoar. São palavras ou expressões
que , de tão arraigadas, passam despercebidas, mas carregam o flagelo do
preconceito. Preconceito velado, o que é pior, porque não mostra a cara, não se
assume como tal. Difícil combater um inimigo disfarçado.
Descobri que no Rio de Janeiro, a pecha recai sobre os "Paraíba", que, aliás,
podem ser qualquer nordestino. Com ou sem a "Cabeça chata", outra denominação
usada no Sudeste para quem nasce no Nordeste.
Na Bahia, a herança escravocrata até hoje reproduz gestos e palavras que
segregam. Já testemunhei pessoas esfregando o dedo indicador no braço, para se
referir a um negro, como se a cor do sujeito explicasse uma atitude censurável.
Numa das conversas que tive com a jornalista Miriam Leitão, ela comentava:
-O Brasil gosta de se imaginar como uma democracia racial, mas isso é uma
ilusão. Nós temos uma marcha de carnaval, feita há 40 anos, cantada até hoje. E
ela é terrível. Os brancos nunca pensam no que estão cantando. A letra diz o
seguinte:

"O teu cabelo não nega, mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega, mulata
Mulata, quero o teu amor".

"É ofensivo", diz Miriam. Como a cor de alguém poderia contaminar, como se fosse
doença? E as pessoas nunca percebem.A expressão "pé na cozinha", para designar a
ascendência africana, é a mais comum de todas, e também dita sem o menor
constragimento. É o retorno à mentalidade escravocrata, reproduzindo as mazelas
da senzala.


O cronista Rubem Alves publicou esta semana na Folha de São Paulo um artigo no
qual ressalta:

"Palavras não são inocentes, elas são armas que os poderosos usam para ferir e
dominar os fracos. Os brancos norte-americanos inventaram a palavra 'niger' para
humilhar os negros. Criaram uma brincadeira que tinha um versinho assim:
'Eeny, meeny, miny, moe, catch a niger by the toe'...que quer dizer, agarre um
crioulo pelo dedão do pé (aqui no Brasil, quando se quer diminuir um negro,
usa-se a palavra crioulo).


Em denúncia a esse uso ofensivo da palavra , os negros cunharam o slogan 'black
is beautiful'. Daí surgiu a linguagem politicamente correta. A regra fundamental
dessa linguagem é nunca usar uma palavra que humilhe, discrimine ou zombe de
alguém".

Será que na era Obama vão inventar "Pé na Presidência", para se referir aos
negros e mulatos americanos de hoje?


A origem social é outro fator que gera comentários tidos como "inofensivos" ,
mas cruéis. A Nação que deveria se orgulhar de sua mobilidade social, é a mesma
que o picha o próprio Presidente de torneiro mecânico, semi-analfabeto. Com
relação aos empregados domésticos, já cheguei a ouvir:- A minha "criadagem" não
entra pelo elevador social !

E a complacência com relação aos chamamentos, insultos, por vezes humilhantes,
dirigidos aos homossexuais ? Os termos bicha, bichona, frutinha, biba, "viado",
maricona, boiola e uma infinidade de apelidos, despertam risadas.
Quem se importa com o potencial ofensivo?
Mulher é rainha no dia oito de março. Quando se atreve a encarar o trânsito, e
desagrada o código masculino, ouve frequentemente:


- Só podia ser mulher! Ei, dona Maria, seu lugar é no tanque!

Dependendo do tom do cabelo, demonstrações de desinformação ou falta de
inteligência, são imediatamente imputadas a um certo tipo feminino:-Só podia ser
loira!

Se a forma de administrar o próprio dinheiro é poupar muito e gastar pouco:- Só
podia ser judeu!

A mesma superficialidade em abordar as características de um povo se aplica aos
árabes. Aqui, todos eles viram turcos. Quem acumula quilos extras é motivo de
chacota do tipo: rolha de poço, polpeta, almôndega, baleia ...Gosto muito do
provérbio bíblico, legado do Cristianismo: "O mal não é o que entra, mas o que
sai da boca do homem".
Invoco também a doutrina da Física Quântica, que confere às palavras o poder de
ratificar ou transformar a realidade. São partículas de energia tecendo as teias
do comportamento humano.
A liberdade de escolha e a tolerância das diferenças resumem o Princípio da
Igualdade, sem o qual nenhuma sociedade pode ser Sustentável.
O preconceito nas entrelinhas é perigoso, porque , em doses homeopáticas,
reforça os estigmas e aprofunda os abismos entre os cidadãos. Revela a
ignorancia e alimenta o monstro da maldade.

Até que um dia um trabalhador perde o emprego, se torna um alcóolatra, passa a
viver nas ruas e amanhece carbonizado:-Só podia ser mendigo!

No outro dia, o motim toma conta da prisão, a polícia invade, mata 111 detentos,
e nem a canção do Caetano Veloso é capaz de comover:-Só podia ser bandido!

Somos nós os responsáveis pela construção do ideal de civilidade aqui em São
Paulo, no Rio, na Bahia, em qualquer lugar do mundo. É a consciência do valor de
cada pessoa que eleva a raça humana e aflora o que temos de melhor para dizer
uns aos outros.


PS: Fui ao Ibirapuera num domingo e encontrei vários conterrâneos. ..


Rosana Jatobá
Rosana Jatobá é jornalista, graduada em Direito e Jornalismo pela Universidade
Federal da Bahia, e mestranda em gestão e tecnologias ambientais da Universidade
de São Paulo. Também apresenta a Previsão do Tempo no Jornal Nacional, da Rede
Globo.

Esse texto é parte da série de crônicas sobre Sustentabilidade publicada na CBN

Quem sou eu